Maristela Mafei

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  • Apresentação
  • De volta à barbárie e o desejo de ficar


    Vista do “pier” da Aldeia Sagrada

    É muito difícil descrever a sensação dessa manhã ao deixarmos a Aldeia Sagrada. Passamos dias em que percebemos que o mundo havia parado, estávamos, de fato, vivendo na civilização. Agora, de volta à barbárie? Provavelmente sim, tudo muito diferente da vida à qual estávamos acostumados. Deixamos o local em estado de torpor.

    Marmitex no último dia, Nixiwaka se despede

    Depois de um café da manhã farto, com direito a marmitex para viagem, Nixiwaka e quase todos da comunidade vieram se despedir. Saímos da Aldeia em seis barcos, pontualmente às 8h.

    Entramos eu e a Lauren, norte-americana que vive na Costa Rica, no barco 60+, considerado um luxo pelo espaço generoso, onde poderíamos ir deitadas em colchonetes. Já havíamos percorrido duas horas de rio quando o motor do nosso barco quebrou. Sem chances. Quebrou mesmo. Tinha que ser substituído.

    Motor quebrado, barqueiros vêm em nosso socorro

    Três barcos pararam em nosso socorro. Distribuir a gente e as outras quatro pessoas que estão conosco em outras embarcações não é viável, todas lotadas. Os barqueiros fazem um “gato” no nosso motor: emprestamos fita crepe, rasgamos sacolas de pano para que eles tenham algo para amarrar um cabo improvisado como leme e conseguimos ir até a Aldeia Yawarani. Nosso barqueiro resolveu correr o risco e deu certo, viemos direto para Tacaroá, de lá pegamos o ônibus para Cruzeiro do Sul, tomamos um banho rápido no nosso hotel e saímos direto para o aeroporto.

    Dessa vez, todos estavam cansados, exaustos, “murchos”, tentando se situar, com cara de “quero mais”, “por que é que não ficamos onde estávamos mesmo”? Uma melancolia, uma tristeza… todo mundo amuado.

    Ônibus de Tacaroá para Cruzeiro do Sul, encontro com Ushunawa no aeroporto

    No aeroporto de Cruzeiro do Sul, um alento: encontramos Ushunawa Yawanawa, da Aldeia Yawarani, uma das 21 aldeias Yawanawa que ficam ao longo do rio Gregório. Foi uma alegria, muitas conversas, fotos, trocas de informações. Ushunawa estava indo para Santa Catarina conduzir cerimônias com comunidades locais; os jovens Yawanawa são preparados desde cedo para levar sua cultura e espiritualidade para fora de seus domínios, e os convites para visitar outras regiões do Brasil e mesmo outros países são bastante comuns.

    Deva e Nykole Uta, líderes do nosso grupo

    Os voos que saem do Acre para outros estados dificilmente partem antes da meia-noite. O nosso, para Brasília via Rio Branco, saiu às 0h50 da madrugada, e às 11h30 desembarcamos em São Paulo. Mima, uma brasileira-australiana, ficou em Rio Branco para encarar a Transamazônica por um dia e meio de ônibus até Cusco, no Peru. As irmãs Nykole e Deva Uta, as maravilhosas empreendedoras que nos possibilitaram essa viagem, embarcaram para o Rio Grande do Norte; Lauren seguiu para o Panamá e, de lá, para as montanhas da Costa Rica, onde gerencia a sua paradisíaca Finca Camino Nuevo, aberta ao público.

    Playlist Yawanawa

    O voo de volta de Brasília é a coisa mais chata e com passageiros mais sem noção do mundo, um público totalmente diferente do que o que seguiu para o Acre, na ida. Sempre tem um chefe/ supervisor/ gerente com um subordinado ao lado explicando algo sobre a firma em plenos pulmões enquanto o outro anota; funcionários do governo explicando porque os juros não baixam para alguém ao lado e por aí vai. Que excelente oportunidade de colocarem um fone de ouvido e ir escutando a seleção de musicas das Aldeias NovaEsperança/ Sagrada, disponível no Spotify. Aff que gente. É a personificação do individualismo, o oposto da realidade que acabamos de deixar.

    Crianças cuidadas por todos, jovens na “praia”

    A cultura Yawanawa, assim como a da maior parte das etnias indígenas, é dotada de grande espírito de coletividade, sem distinção. As crianças são criadas livres, e todos olham por elas; na cozinha coletiva, todos fazem as refeições em conjunto; os barcos são utilizados por todos na aldeia; nas exposições de artesanato quem quer, participa, as compras são coletivas, é difícil encontrar alguém que diga “isso é meu”.

    Espiritualidade e orgulho de pertencer à Floresta

    Você fica estupefato de ver como essas comunidades vivem em um local acessível somente por um rio cada vez mais raso e com mais troncos de árvores a quebrar motores, devido à erosão e ao desmatamento. Dotados de grande sabedoria e alimentados por uma espiritualidade incompreendida por nós, essa etnia percebeu que o seu futuro estava na “globalização”.

    Hoje eles sobrevivem levando seu canto, rituais e cerimônias para todo o mundo, de Portugal à Turquia, da Suécia a Los Angeles e também para muitas capitais do país. Por mais que tenham “conforto” e entrem em contato com as chamadas “mordomias” dos homens brancos nessas ocasiões, eles encaram muitas horas de ônibus em estradas esburacadas e mais ainda em barcos precários para voltar às suas comunidades no interior da floresta. O orgulho de pertencer aos povos originários é perceptível nessas comunidades, que olham para nós com olhos de pena quando dizemos adeus, pela ansiedade que exalamos, pelas nossas queixas de insônia, pela vida que voltaremos a ter longe deles.

    O grupo se despede
    Com Ninú Niju e Mukaxarrú, irmã e filha do cacique Nixiwaka

    Haux Taux Yawanawas

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  • Shumuã, a árvore que espanta os agressores da Floresta


    Do mesmo modo que no filme Avatar, a Shumuã “engole” as pessoas hostis

    Essa é a Grande Shumuã, idade estimada de 120 anos, da mesma família que a Samaúma, a grande mãe da Floresta. Pelos cálculos do cacique Nixiwaka, teria vivido 800 anos nessa terra dos Yawanawa. Chega-se à Shumuã percorrendo 3 km da Aldeia pela Trilha dos Antepassados – que existe igualmente há séculos, já foi parte da trilha dos indígenas que iam do que hoje é o Brasil, passando pela Bolívia e o Peru até chegar aos Andes.

    Assim como a Samaúma, a Shumuã tem um espírito igual ao dos seres humanos, tem alma própria. Na sua copa, as águias fazem ninhos; nas raízes, são as onças e os jaguares, e ela engole os agressores da floresta que se aproximam, como fez nos filmes da franquia Avatar, de James Cameron. Por suas defesas, a Shumuã teria sobrevivido por milhares de anos. Considerada sagrada para os maias e muitos povos indígenas do Brasil, sua copa se projeta acima de todas as demais, servindo de proteção para outras árvores e animais.

    Rituais de saudação à árvore-mãe

    São muitas as histórias de pessoas que morreram por tentar fazer casas embaixo da Shumuã ou algum trabalho espiritual sem a permissão dos pajés. Sua importância é tanta que somente o cacique Nixiwaka ou sua mulher e líder espiritual Putany podem trazer visitantes para conhecê-la, ninguém mais está autorizado sem a permissão dos dois. Nessas ocasiões, são muitas as cantorias e rituais de saudação à “árvore-mãe”.

    Nixiwaka nos conduz pela trilha, seguindo pegadas de onça e de porquinho do mato

    Pela trilha, que atravessa riachos, troncos de árvores improvisados como pontes sobre barrancos e muito mato, o cacique Nixiwaka identifica pegadas de uma onça. Sim, uma onça. Depois de três anos de proibição à caça de pacas, porquinhos do mato, antas e outros animais dentro da reserva da Aldeia Sagrada, as onças, atraídas pela comida “farta”, estão voltando, e conviver com elas nem sempre tem sido fácil para os Yawanawas.

    Igualmente não tem sido fácil a convivência com as cobras. Elas fazem parte dos ritos e tradições medicinais, e é muito comum os povos originários terem visões com jibóias e cascavéis, que levantam a cabeça, chacoalham o “corpo” e os impulsionam a seguir adiante e buscar o que é melhor para eles.

    Os Yawanawa e outros povos da Ayahuasca são combativos politicamente, foram os primeiros a conseguir demarcar oficialmente suas terras, estão entre os que lideraram a resistência ao Marco Temporal, unem-se em defesa dos indígenas ainda não contatados, vão às Assembleias Gerais da ONU denunciar abusos e às cerimonias do Uni, onde as visões com as cobras os fortalecem para continuar espiritualizados e aguerridos.

    Na trilha, de repente uma cobra preta e branca não identificada aparece, salva pela lanterna

    Mas o que você faz ao dar uma escapada da cerimônia às 20h30 para ir ao banheiro, 30 metros adiante, em um caminho escuro? Liga sua lanterna, dá cinco passos e se depara com uma cobra muito parecida com a coral, a terceira que encontra na semana, só que essa, nas cores preta e branca, ninguém sabe dizer ao certo se é venenosa ou não, “é uma cobra muito rara”, dizem, e daí você fica paralisada até chegar alguém em seu socorro? No dia do seu aniversário? Tem algum significado especial? Segundo o Google, sonhar com ou se deparar com uma cobra significa necessidade de renovação, de desapegar do passado. Para o pajé DuáBussē, significa que você está no meio da floresta, onde tem cobras, e precisa ter muito cuidado quando encontra alguma delas.

    Redes e mosquiteiros para as trocas

    Estamos no oitavo dia de nossa viagem e chegou o momento de arrumar as malas para voltar para casa. Amanhã temos que estar às 7h na prainha onde ficam os barcos. O dia é dedicado à feira de trocas, podemos trocar nossas botas, capas de chuva, redes, travesseiros, lanternas e tudo o mais que quisermos por cocares, pulseiras e até mesmo saberes. Fiz uma nova consulta com o pajé DuáBussē e, quando quis saber o preço, ele me perguntou o que eu tinha para trocar. Aceitou de bom grado uma rede com mosquiteiro, uma capa de chuva e um travesseiro. Fomos à cozinha checar os últimos preparativos que a Rosa, nossa cozinheira e uma das sócias da Meni Kehea (veja mais no post final, nas dicas de onde comprar roupas temáticas da comunidade), iria providenciar para levarmos nos barcos no trajeto de volta.

    Mesa de lanchinhos preparada pela Rosa para a nossa viagem de volta
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  • A Cura dos Povos da Floresta

    O pajé DuáBussē Hunikiē e eu na Aldeia Sagrada

    DuáBussē Hunikiē é um pajé da etnia Hunikiē que veio para uma visita de três dias à Aldeia Sagrada. Como ele é profundo conhecedor das plantas da Floresta, o cacique Nixiwaka pediu para o pajé ficar um pouco mais e, assim, já se passaram quatro anos…

    Bussē (lê-se “Bussan”) mandou buscar as três filhas, o genro, netos e a família da sogra da filha, que estavam então na vizinha Nova Esperança, e todos acabaram se instalando no local. Ele diz que um dia voltará para sua comunidade Hunikiē, na divisa do Acre com o Peru, mas não sabe quando. Bussē se tornou o homem das plantas dos Yawanawa e hoje cuida dos canteiros que, junto com as ervas extraídas da floresta, reúnem mais de duas mil espécies de plantas medicinais.

    Canteiros de ervas e mais de duas mil plantas medicinais

    Em ocasiões de dieta para limpeza e purificação, os Yawanawa incluem o veneno do sapo Kapu. DuáBussē conta que alguns povos de muitos, muitos anos atrás capturavam cascavéis e jiboias também para as dietas especiais de suas comunidades, extraíam delas o veneno e as devolviam para a Floresta. Mas ele mesmo nunca fez e nunca viu alguém fazer isso. “O veneno da sucuri provoca sonhos que transmitem saberes e conhecimentos”, explica o pajé, e o da jiboia atrai espíritos que aprimoram a sabedoria dos líderes, além de ser poderoso para dietas que demandam redução de peso.

    A verdade é que, sim, essas e outras cobras aparecem em sonhos e em mirações nas cerimônias do Uni – é quando entra na força da miração que o pajé (no caso das cerimônias na Aldeia Sagrada, o pajé Saku) inicia o primeiro canto da noite, de uma série de Mekãs (cantos solos).

    Roupas com estampas de cobras e outras alusões aparecem fortemente nas vestimentas dos indígenas nas cerimônias e fora delas, e os visitantes seguem a tradição, chegando à Aldeia no mesmo estilo. Contei para DuáBussē que vimos uma cobra txua (não venenosa) e outra surucucu (peçonhenta) no caminho para o refeitório e ele calmamente disse: “é só vocês fecharem bem as portas dos quartos que elas não entram”. Então tá. Quando eu vi, dias depois, uma outra cobra preta e branca que ninguém soube identificar e perguntei a ele se isso tinha algum significado especial, Bussē respondeu: “tem sim, significa que você está na floresta e que precisa prestar atenção onde pisa”.

    No detalhe, a Surucucu

    Tudo isso para dizer que o procurei porque minha insônia havia voltado e eu estava muito triste, angustiada e em depressão por vários motivos. Bussē então marcou uma sessão de cura para mim e seguiu todos os “protocolos” que tanto os Yawanawa quanto os Hunikiē seguem: fez um rezo com as mãos na minha cabeça; entoou cânticos na língua nativa; evocou o Criador, Sheni, o Deus da Floresta, Ninauá, Pai da Mata, e os Ancestrais; “aspirou” meu corpo com as mãos em concha para, na sequência, soprar entoando o Osh Osh, mandando os espíritos malignos para bem longe; esfregou no meu peito um macerado com ervas, me deu o que sobrou e mandou que eu passasse no meu corpo todos os dias antes de dormir. Prometeu que me daria um fardo dessas ervas para eu levar para casa. E deu.

    Canto e dança fazem parte do cotidiano dos Yawanawa, um povo extremamente musical

    No início do mundo, os Yawanawa peregrinavam atrás de uma terra boa, com rios e florestas para poder se estabelecer. Todas as vezes que a encontravam, tentavam se instalar, mas vinha uma ventania muito forte que os arrastava para trás. Um dia, todos juntos começaram a soprar a ventania para longe e, assim, eles fundaram sua aldeia. Essa lenda, contada pelo cacique Nixiwaka, explica o fato de os pajés do Vale do Juruá sempre “aspirarem”, sem encostar muito no corpo da pessoa, e soprar, Osh Osh, tirando e jogando para longe alguma doença e todo o mal. O sopro deles, assim como a voz, são muito potentes, ficamos realmente espantados. Para a voz e também para o surgimento das plantas do Ayahuasca, tudo tem uma explicação.

    Na preparação para a cerimônia do Uni

    Os primeiros indígenas não sabiam o que era a morte. Admiravam muito seu líder, faziam tudo o que ele pedia. Quando o líder morreu, sem saber do que se tratava, sentaram-se ao redor dele e aguardaram alguma orientação. Com o passar dos dias sem resposta, resolveram enterrá-lo. Continuaram por perto aguardando algum sinal e, então, viram que nasceram três plantas: o cipó Mariri (ou Caapi), a Chacrona e a Pimenta Vermelha. Esses indígenas passaram a consumir as novas plantas acreditando que, com isso, iriam encontrar seu líder. Mas o efeito foi totalmente contrário.

    Aguardando os visitantes para a caminhada na floresta

    Com a pimenta, a voz torna-se mais potente. Desse modo, acreditavam que seriam ouvidos, se tornariam bons comunicadores e, ainda, excelentes cantores. São comuns, entre os Yawanawa, dietas em que pimentas vermelhas são bastante consumidas no aprimoramento da voz para os cantos das cerimônias. E é perceptível nessas ocasiões como eles têm, realmente, uma voz muito potente.

    O Mariri e a Chacrona provocavam sonhos e visões, principalmente com a jiboia, que ficava com a cabeça “em pé” e os “empurrava” para a frente, fazendo eles retomarem suas vidas e buscarem sempre o que era melhor para eles. Essas plantas são fortemente consideradas no preparo espiritual dos povos da Floresta, e as etnias que as utilizam são bastante atuantes em questões como a demarcação das terras indígenas e a luta contra o marco temporal.

    Cipó Mariri
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  • Cerimônia do Uni, corpo e alma com o Sagrado

    Mulheres participam de comemoração no Shuhu da Aldeia Sagrada

    A cerimônia do Uni dos Yawanawa é uma das coisas mais bonitas de se ver no mundo, tomando ou não o Uni. Começa às 20h e costuma ir até 6h da manhã em um ritual que acontece no Shuhu, uma espécie de oca enorme construída com vigas de madeira, coberta por telhas, sapé e folhas de palmeira. Uma abertura em parte do teto dá escape à fumaça, nas ocasiões em que a fogueira é acesa.

    Estávamos em cerca de 100 pessoas. Todos se acomodaram muito bem para participar das três partes da cerimônia, as duas primeiras com muita cantoria, tanto individual (em que os Mekãs, cantos espirituais que evocam a Força, ou os sonhos e miragens são cantados) como em grupo (chamados de Sitii, esses cantos abordam vários temas como amor, coragem, esperança e até mesmo saudação aos visitantes). Os cantos são executados pelas e pelos jovens da comunidade, acompanhados de dança, movimentos corporais, com ou sem acompanhamento de instrumentos musicais, notadamente tambores, violões e, algumas vezes, flautas.

    CANTOS, DANÇAS E MOVIMENTOS TOMAM CONTA DA CERIMÔNIA

    Convidados se preparam para o evento; à direita, a dança dos homens dentro do Shuhu

    Desde o início, todos são convidados a formar uma grande roda. Os cantos são repetidos para que possamos memorizar os refrões e acompanhá-los, com vários solistas, instrumentistas e percussionistas da comunidade se revezando.

    Mukavani, 12, e sua irmã Mukacharro, 15, os filhos caçulas do cacique Nixiwaka que estavam em um local afastado, mas dentro da Aldeia, chamado Terreiro do Muká, em dieta especial com a mãe, a líder espiritual Putany Yawanawa, apareceram de surpresa e conduziram boa parte do ritual. Ambos têm voz extremamente potente, capaz de fazer inveja a qualquer solista do Metropolitan Opera, em Nova York, ou do Royal Opera, de Londres. Acredito que todos os aspirantes a cantores do mundo seguiriam de bom grado as dietas e preparos específicos que esses jovens praticam para alcançar a voz que têm. Quando eles cantam, seja o ouvinte crente, místico ou ateu, não resta dúvida de que o Criador existe e entrou em você.

    CONEXÃO COM A MEMÓRIA DOS ANCESTRAIS

    Shuhu pronto para a celebração; à direita, um convidado da aldeia vizinha chega para a festa

    Para os Yawanawa, a cerimônia do Uni é mais um dos rituais realizados para religar seus integrantes aos conhecimentos e memórias dos ancestrais. As dietas e jejuns aguçam as percepções e deixam corpo e mente abertos para o acesso à espiritualidade e ao Sagrado.

    O Uni ou Ayauhasca, feito da mistura do cipó Mariri com as folhas da Chacrona, consumido por pelo menos 72 grupos indígenas da Amazônia, possibilita uma conexão com a floresta, com seus animais — a jiboia e a cascavel, por exemplo, que “ficam em pé” e “chacoalham”, indicam que é hora de levantar a cabeça e seguir em frente — e ainda com os antepassados, a fim de receber orientações sobre o que fazer, qual caminho a seguir.

    Foi em uma dessas cerimônias que os ancestrais apareceram nas visões da líder Putany, incumbindo-a da missão de liderar seu povo para retomar as terras que eram deles originariamente, a Aldeia Sagrada.

    CASAMENTO GRINGO NA ALDEIA – TER FILHOS É IMPORTANTE

    Noivos chegam para o casamento

    Um jovem casal de visitantes da nossa comitiva (ele do México, ela dos Estados Unidos) se casa na Aldeia. Os dois entram no recinto vestidos a caráter para ouvir o cacique Nixiwaka explicar o que significa um casamento para os Yawanawa.

    “Mais um homem, mais uma mulher para ajudar nossos chefes a cuidar da nossa aldeia. O compromisso é um com o outro e com toda a comunidade”, diz Nixiwaka, chamando líderes da comunidade para detalhar o papel de cada um dos cônjuges, a necessidade de união duradoura, de deixar um legado que começa por ter filhos. Isso é muito importante para a etnia, que já somou 80 mil pessoas quando o Brasil foi “descoberto”; foi praticamente dizimada, reduzida a 280 indivíduos em meados do século 20, e agora não poupa esforços para ver crescer cada vez mais seus atuais 1,8 mil integrantes.

    Casamento na Aldeia Sagrada

    É muito comum ver casais Yawanawa com cinco, seis filhos. Crianças pequenas não contam com um adulto específico atrás delas o dia todo – sempre tem adultos por perto em todas as áreas e, junto com suas atividades, todos dão uma espiada no que elas estão fazendo. Correm livremente pela aldeia, improvisam várias brincadeiras, e o auge da alegria acontece quando passa um adulto e diz “vamos para o rio”, aí o alvoroço é total. Em uma dessas ocasiões, fui junto. As crianças não pouparam esforços, no rio, para me mostrar onde era fundo, onde não era, e “ó, vejam só como eu já sei nadar”!!!

    O RITUAL QUE DEIXA TODOS EXTASIADOS

    Indo para o Shuhu

    Muito difícil descrever a sensação que toma conta de você ao ouvir os Yawanawa cantarem e se movimentarem no interior do Shuhu nas cerimônias do Uni; é algo inebriante, você se esquece que é madrugada avançada e que deveria estar morrendo de sono, estendendo seu colchonete em algum canto para um cochilo.

    Que nada. Você fica extasiada com aquelas pessoas, que vozes, que talento, que espetáculo lúdico, os trajes, os adornos, as pinturas corporais, as danças, os movimentos, tudo envolve e “embebeda”, e quando você se dá conta, a terceira e última parte da cerimônia já foi iniciada.

    Final da celebração, indo dormir

    É aqui que a situação se inverte e os convidados assumem tambores e violões para apresentarem repertório de seus países para a comunidade local. Quando percebi, já eram 6hs da manhã, hora de voltar para o quarto, dormir algumas horas e seguir, antes do almoço, rumo à floresta para o banho de ervas.

    BANHO DE ERVAS NA FLORESTA ESPANTA MAU-OLHADO

    Esfoliaçao com ervas embaixo da Paxiúba ao som de cantos e tambores

    O banho de ervas consiste em uma mistura de várias plantas que nos purifica e nos fortalece e o recebemos em forma de esfoliação dentro de “cabines” feitas especialmente para essa finalidade, na floresta, erguidas com folhas de coqueiro e palmeira — enquanto crianças de três, quatro anos dão um verdadeiro “show” de tambor, acompanhando suas jovens mães e irmãs no violão.

    Homens e mulheres dão-se as mãos em filas opostas e dançam um em direção ao outro; é impressionante como em qualquer atividade dos Yawanawa, desde a cerimônia sagrada, caminhadas ao rio, na mata, nos banhos de ervas, em tudo a dança, os cantos e os tambores estão presentes. É um povo extremamente musical e muitos dos integrantes da nossa comitiva estão aqui com seus instrumentos para fazer aulas de cantos ancestrais com eles.

    NIXIWAKA EXPLICA O SIGNIFICADO DAS ERVAS

    Nawáwarani e Piraw: cacique explica para que servem

    Ajudado pela guia e tradutora (para o inglês) Deví, o cacique Nixiwaka nos conta para que servem algumas das ervas empregadas na esfoliação que estávamos recebendo – a Nawáwarani afasta mágoas, raiva e inveja que o outro tem de nós, enquanto a Piraw, no sentido oposto, tira a mágoa que temos e nos acalma, nos faz ter paciência para tomar decisões certas.

    Desnecessário falar do assédio ao redor do cacique ao voltarmos para a Aldeia, liderado por mim, diga-se de passagem. Todos queríamos levar mudas dessas plantas na mala, na volta para casa, e perpetuar essa sensação de encantamento e sossego.

    Defumaçao com Sepá
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  • O Cacique Nixiwaka completa 60 anos

    Filhos do cacique homenageiam o pai

    O Shuhu amanheceu diferente, com uma nova decoração, muitas flores e fotos do cacique Nixiwaka, uma forma de a comunidade homenageá-lo pela data. Mukavani e Mukaxarrú, os filhos caçulas do cacique, interromperam a dieta no Terreiro do Muká, que faziam com a mãe, para prestigiar a festa do pai. Ainda assim, Nixiwaka estava “amuado”. “Qualquer evento, celebração ou mesmo a vida cotidiana na aldeia, nada é a mesma coisa sem a Putany”, dizia sobre sua mulher, que permaneceu no local da dieta, para todos que dela perguntavam.

    21 comunidades e 4 etnias presentes

    O cacique Nixiwaka posa com os filhos caçulas e toda a família

    Uma grande churrasqueira foi cavada no chão de um Shuhu menor (perto do outro, principal, onde acontece a festa) para a celebração dos 60 anos do cacique Nixiwaka. Do total das 23 aldeias dos Yawanawa espalhadas ao longo do rio Gregório, 21 estão representadas, além de outras quatro etnias, Hiuniqui, Marubo, Katawa e Asihinka (essa última da mesma etnia que Werner Herzog filmou em boa parte de seu Fitzcarraldo, de 1982).

    Somos quase 200 pessoas, 150 das comunidades e 50 das comitivas de fora, e é impressionante a organização, o empenho para que as coisas saiam bem, tudo impecável, programação seguida à risca. A festa começou às 10h da manhã e foi até as 18h, com comida farta, bem servida, muitos balões, mesa decorada com esmero, bolos enfeitados e tudo o mais que um aniversariante tem direito.

    Cantoria do Pajé Saku para os convidados do cacique

    Pajé Saku anima a festa

    O pajé Saku, que sempre puxa os cantos sagrados (Mekãs) na cerimônia do Uni, agora instala um teclado no mesmo local e, acompanhado dos filhos adolescentes do cacique, puxou a cantoria. Várias canções populares dos Yawanawa são então adaptadas com ritmos do pop rock, sertanejo e eu arriscaria algo parecido com marchinhas de carnaval.

    Convidado do cacique Nixiwaka

    Muitas meninas com seus vestidos e adornos de festas, senhoras superchiques com cabelos enfeitados por arranjos de flores, penas, miçangas, em uma grande festa dos povos da floresta; muitos “dates” entre jovens de várias aldeias. Fiquei pensando, quantos namoros seriam firmados ou começariam nesse momento?

    Lembrancinhas com Sananga, Sepá e rapé

    Lembrancinhas de aniversário com Sananga, colírio para sonhar. Feliz de festejar os 60 de Nixiwaka

    A ocasião comportou até “lembrancinhas”, dadas pelo cacique aos convidados bem ao estilo Yawanawa: uma latinha com Sepá (resina utilizada para defumação em rituais e bênçãos), outra com Rapé (uma espécie de tabaco) e um vidrinho do colírio da floresta, conhecido por Sananga, que abre a mente para os sonhos.

    Um adendo: os Yawanawa não consomem bebidas alcoólicas nem doces, a não ser em ocasiões especiais, como alguns dos aniversários. Em dez dias que ficamos na Aldeia, não foram servidas sobremesas e nem alimentos adocicados. Dentro dessa linha, muita gente quem vem de fora para se consultar com o pajé Saku escuta como primeira recomendação abolir alimentos adocicados da dieta. A cura dos pajés do vale do Juruá envolve muitas dietas. Além do açúcar, é muito comum a recomendação de ficar um período sem carne vermelha, bebida alcoólica e sexo.

    Celebração dos Povos da Floresta

    Esse grande encontro dos povos da floresta que foi, inicialmente, previsto pelos filhos de Nixiwaka como uma reunião de família, acabou se traduzindo em uma manifestação de apoio à liderança do cacique em meio aos preparativos que sua Aldeia faz para sediar o IV Encontro Internacional da Ayahuasca — onde 200 lideranças indígenas estarão presentes. Ou “Encontro de lideranças indígenas espirituais“, como corrige Nixiwaka a todos que o mencionam.

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  • Séculos de luta pela vida e pela terra

    Artistas-artesãs Yawanawa

    Quarenta e três comunidades indígenas ocupavam as margens do rio Juruá onde, atualmente, está localizada Cruzeiro do Sul, uma cidade de 90 mil habitantes, distante 600 km de Rio Branco, capital do Acre.

    Em 1857, chegaram as primeiras expedições de seringueiros e igrejas (protestante, católica, evangélica), e as tribos foram aos poucos dizimadas ou drasticamente reduzidas. Algumas se deslocaram para o vizinho Peru, outras se reagruparam séculos depois em torno de uma fração mínima do que antes eram as suas terras, como os Yawanawa.

    Os nativos que sobreviveram à aniquilação hoje geram renda para Cruzeiro do Sul e localidades vizinhas, atraindo milhares de visitantes que nelas pernoitam, vão às compras, gastam em restaurantes etc. O maior orgulho dos habitantes da cidade é a farinha de mandioca, declarada patrimônio cultural do Estado do Acre.

    Cruzeiro do Sul é o epicentro turístico e financeiro do vale do Juruá, situado entre os vales do Javari e do Xapuri, este último famoso pela militância política dos seringueiros, área onde foram assassinados o líder Chico Mendes e a irmã Dorothy, uma gente aguerrida que luta por sua cultura, pela sobrevivência digna dos nativos e de seu habitat.

    “Floresta produtiva é floresta em pé” é também lema dos aguerridos Yawanawa, um dos primeiros povos a conseguir que suas terras, onde estão hoje a Aldeia Sagrada e a vizinha Nova Esperança, fossem demarcadas oficialmente.

    No rio gregório, erosão e rastro de mata derrubada

    Barco encalhado no rio Gregório

    Deixamos o hotel em Cruzeiro do Sul às 5h. Quatro horas depois, lotamos seis barcos com cinco pessoas cada e aqui estamos nós, descendo os 300 km do rio Gregório até a Aldeia Sagrada.

    Trinta minutos bastam para você fixar em sua mente as imagens de matas, rios, bancos de areia, crianças acenando em frente às casas de palafita e mulheres lavando roupas nas margens do rio. Primeira pergunta que vem à mente: por que demorei tanto para fazer isso? Me sinto salva do mundo nesse barco. Passaria o dia inteiro subindo e descendo o Gregório.

    Erosão e desmatamento despejam galhos e troncos no rio Gregório

    Ao longo do percurso fazemos paradas para o xixi no mato e dar um mergulho no rio. Volta e meia o motor de algum dos barcos dá uma “rateada”, o que obriga todos os outros a parar e aguardar até que o problema se resolva. Para meu deleite, percebo que essa viagem vai durar mais de oito horas.

    Perto de 100 km adiante, a navegação fica bem precária. O avanço do desmatamento e a consequente erosão deixam o rio repleto de troncos, galhos e mato. As hélices e os lemes dos barcos se soltam e, a toda hora, os barqueiros precisam parar para buscá-las embaixo d’água.

    pinturas CORPORAIS e a primeira cerimônia

    Foi uma noite bem dormida, depois de uma chegada à Aldeia Sagrada tumultuada e cansativa, mas lúdica e emocionante. O barco encostou e, lá de baixo, avistamos todos acima, na varanda do deck, esperando por nós com suas roupas e pinturas típicas.

    Chegada à Aldeia Sagrada, os Yawanawa nos esperam na varanda

    O cacique Nixiwaka Biraci Brasil é a simpatia em pessoa. Justo agora está com uma equipe do fotógrafo Sebastião Salgado dando entrevista para um documentário sobre lideranças indígenas, capitaneado pelo jornalista Leão Serva e Rogério Assis, ambos meus contemporâneos na Folha de S.Paulo. Reencontrei os dois aqui, que coisa boa, quantos abraços, updates de nossas vidas, fotinhos e por aí vai.

    Hoje é um dia muito importante. Das 20hs até as 6hs da manhã, teremos a cerimônia do Uni, ou Ayahuasca, a primeira de um total de três em oito dias – a última coincidirá com o aniversário de 60 anos do cacique Nixiwaka.

    Pinturas corporais feitas com tintas de jenipapo e urucum

    “Muito obrigado por trazer na bagagem de vocês a esperança de um novo tempo. Nós somos os povos que falam a língua dos pássaros, das árvores, da Lua, do Sol. Eles são a nossa família, sinto a respiração de cada um deles. E em família não se pode tocar. Esse é o sentimento que nós, povos indígenas, temos com a natureza. Moro nas margens do rio onde meus ancestrais tomaram banho e agora meus filhos e netos tomam.”

    O dia começou com a sessão de pinturas sagradas, feitas com jenipapo e urucum. Enquanto nossos rostos e braços eram pintados por homens e mulheres indígenas, o cacique Nixiwaka, guardião espiritual da medicina dos povos originários, iniciou sua fala.

    Jovens Yawanawa tocam tambores na Floresta

    O cacique situou em sua fala as enchentes terríveis do rio Gregório, que devastaram várias aldeias da região. Emocionado, contou que sua mulher, Putany, “pessoa pela qual continuo cada vez mais apaixonado devido a sua coragem”, estava em um local afastado, em dieta especial, prática comum entre os líderes Yawanawa, acompanhada dos dois filhos menores do casal. O dia teve ainda exposição dos artesãos da Aldeia, devidamente paramentados com pinturas corporais e adornos, e pudemos vivenciar a experiência da cerimônia do Uni ou Ayahuasca.

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  • O mundo voa para a Aldeia

    Estou no voo de Brasília para Cruzeiro do Sul, no Acre, com escala em Rio Branco, a capital do estado. Ao meu lado está Manuel, um jovem que veio da Espanha para o Brasil pela primeira vez, decidido a se unir a esse grupo formado por pessoas daqui, dos Estados Unidos, Canadá, Croácia, Alemanha, México, Rússia, Colômbia e Peru para participar das cerimônias do Uni, na Aldeia Sagrada dos Yawanawa.

    Os Yawanawa habitam 21 aldeias ao longo do rio Gregório, município acreano de Tarauacá, quase divisa com o Peru; a que leva o nome de Sagrada, para onde estamos indo, é bastante emblemática. O local foi o primeiro onde a etnia se fixou há milhares de anos. Com a crescente hostilidade de igrejas e seringueiros, essa terra foi gradativamente sendo abandonada, e parte dos Yawanawa que nela morava fundou outra aldeia rio acima, a Nova Esperança.

    O cacique Nixiwaka Biraci Brasil fala aos visitantes diante de uma Sumaúma, mãe de todas as árvores

    Em 2019, a líder espiritual Putany, uma mulher aguerrida, de uma força e carisma extraordinários, casada com o cacique Nixiwaka Biraci Brasil, liderou a reocupação do local fortemente motivada a honrar o legado de seus ancestrais, que lá ficaram sepultados. Menos de uma década depois, a Aldeia Sagrada, já estruturada, abre as “portas” para comitivas de fora, a maior parte conhecidos que estiveram com seus líderes em rituais do Uni no Rio, São Paulo e no exterior.

    Chegar lá exige disposição: enfrentamos um total de nove horas de voo, mais quatro de ônibus e oito de barco. Vamos pegar três voos com destino final em Cruzeiro do Sul, polo turístico do Acre. Pernoitamos na cidade, “ajeitamos” as coisas por um dia e no outro madrugamos para tomar o ônibus até Tarauacá e, dali, o barco que nos levará até a Aldeia Sagrada.

    Líderes políticos e espirituais da Aldeia, o cacique Nixiwaka Biraci e sua mulher Putanny Yawanawa chegaram a ser levados pelo diretor de cinema James Cameron para o Estúdio 7, em Los Angeles, durante a produção de um dos filmes da série Avatar. Lá deram, para a equipe do cineasta, toda a consultoria necessária sobre as cerimônias e rituais indígenas presentes nos filmes, como o Vê Kuxi (quando os pajés sopram sobre o corpo da pessoa doente com a finalidade de cura) e a Cerimônia do Uni, um momento espiritual de grande importância voltado ao crescimento pessoal e de conexão com a floresta.

    No voo, perto de mim está sentada uma antropóloga com seu marido boliviano e duas crianças. A bebê tem um ano e essa é sua vigésima quinta viagem. O avião está lotado e seus passageiros parecem formar um grande grupo identitário. Desconfio então que os voos que partem de Brasília para o Norte estão cheios de pessoas assim, dedicadas à floresta e aos povos originários, viajam a trabalho (ONGs), para visitar parentes ou por curiosidade, por respeito aos ancestrais ou simplesmente para se desconectar do que fazem e ampliar suas vivências. Provavelmente, estou nesse último grupo.

    Quando você identifica sua “tribo” no aeroporto, logo percebe que não está no meio de “gringos” ou turistas estrangeiros, não no sentido de quando viaja para o exterior. Aqui parece que você já os conhece há algum tempo, se identifica com eles nas primeiras apresentações, e a cumplicidade é imediata. Dentro do avião trocamos olhares de quem acha graça e se diz “ai meu Deus, haja paciência” quando alguém nos pergunta “o que é que vocês vão mesmo fazer no meio dos indígenas?” Pelo único fato de que estamos aqui com muita humildade para conhecer pessoas detentoras de uma cultura milenar e, com elas, aprendermos algo, pela disposição em contar nossas histórias e juntos nos acolhermos. Sabemos que estamos entre iguais. É isso o que vamos fazer.

    Garoto Yawanawa toca tambor no ritual do banho de ervas

    Na primeira vez em que estive com os Yawanawa, na Aldeia Akasha, em Itaipava, Rio de Janeiro, quando eles foram em comitiva realizar rituais no local, a audiência era diferente. Muitas pessoas na faixa dos 45-70 anos recorreram à cerimônia para falar de suas dores e experimentar o acolhimento em meio a um grupo ainda mais cosmopolita: um bombeiro sobrevivente do 11 de setembro em Nova York, uma garota cuja família fugiu de Sarajevo e outra da Rússia, uma turca muçulmana de esquerda interessada em levar a comitiva para cerimônias na Europa e um palestino parisiense profundamente preocupado com amigos que estavam na Faixa de Gaza. Será que eles ainda estavam vivos? Ele não sabia dizer.

    Quando pediram para eu contar a minha história, me encolhi. Sem importância que era, naquele contexto, falei: “Não tenho nada para contar que se equipare ao que vocês disseram. Vim porque meu filho insistiu. Eu não estava levando muito a sério, mas aos poucos fui me sentindo abduzida, perplexa e encantada. Quero voltar mais vezes”.

    E assim foi. Meses depois da experiência no Rio, estou aqui indo para o interior da floresta encontrar os Yawanawa em seu território de origem com um grupo de perfil bem diferente. Jovens que vieram de seus países com seus violões para tocar com os indígenas; outros para conhecer a floresta e o Brasil, praticamente todos dedicados à área da saúde corporal, meditação e yoga, terapias alternativas e música, alguns deles deixaram o mercado corporativo para se dedicar a esse modo de vida.

    Ruidosos, divertidos, muitos já estiveram juntos em vivências anteriores. Entre si, combinam atividades como ficar três dias isolados na montanha Segualquia, em Santa Catarina, ou ir às cerimônias na Aldeia Yawaho, das guardiãs-irmãs Deva e Nicole, em Natal, Rio Grande do Norte, as líderes aqui do nosso grupo, ou ainda para a Finca Camino Nuevo em Monteverde, Costa Rica, da Lauren Landan, a única da minha faixa etária 60+ no grupo. O rapaz espanhol ao meu lado pergunta se quero seguir viagem com ele para o Peru, rumo a um retiro de instrumentistas musicais. “Não, obrigada”, respondi, “não trouxe meu piano”.

    Há muita expectativa sobre as comemorações – às quais vamos nos juntar – dos 60 anos do cacique Nixiwaka Biraci, uma figura extraordinária, forte liderança dos povos da floresta. Sua comunidade será a próxima a sediar a Conferência Internacional da Ayahuasca, reunindo mais de 200 líderes indígenas do Brasil e do exterior.

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Maristela Mafei

  • Apresentação