
É muito difícil descrever a sensação dessa manhã ao deixarmos a Aldeia Sagrada. Passamos dias em que percebemos que o mundo havia parado, estávamos, de fato, vivendo na civilização. Agora, de volta à barbárie? Provavelmente sim, tudo muito diferente da vida à qual estávamos acostumados. Deixamos o local em estado de torpor.

Depois de um café da manhã farto, com direito a marmitex para viagem, Nixiwaka e quase todos da comunidade vieram se despedir. Saímos da Aldeia em seis barcos, pontualmente às 8h.
Entramos eu e a Lauren, norte-americana que vive na Costa Rica, no barco 60+, considerado um luxo pelo espaço generoso, onde poderíamos ir deitadas em colchonetes. Já havíamos percorrido duas horas de rio quando o motor do nosso barco quebrou. Sem chances. Quebrou mesmo. Tinha que ser substituído.

Três barcos pararam em nosso socorro. Distribuir a gente e as outras quatro pessoas que estão conosco em outras embarcações não é viável, todas lotadas. Os barqueiros fazem um “gato” no nosso motor: emprestamos fita crepe, rasgamos sacolas de pano para que eles tenham algo para amarrar um cabo improvisado como leme e conseguimos ir até a Aldeia Yawarani. Nosso barqueiro resolveu correr o risco e deu certo, viemos direto para Tacaroá, de lá pegamos o ônibus para Cruzeiro do Sul, tomamos um banho rápido no nosso hotel e saímos direto para o aeroporto.
Dessa vez, todos estavam cansados, exaustos, “murchos”, tentando se situar, com cara de “quero mais”, “por que é que não ficamos onde estávamos mesmo”? Uma melancolia, uma tristeza… todo mundo amuado.

No aeroporto de Cruzeiro do Sul, um alento: encontramos Ushunawa Yawanawa, da Aldeia Yawarani, uma das 21 aldeias Yawanawa que ficam ao longo do rio Gregório. Foi uma alegria, muitas conversas, fotos, trocas de informações. Ushunawa estava indo para Santa Catarina conduzir cerimônias com comunidades locais; os jovens Yawanawa são preparados desde cedo para levar sua cultura e espiritualidade para fora de seus domínios, e os convites para visitar outras regiões do Brasil e mesmo outros países são bastante comuns.

Os voos que saem do Acre para outros estados dificilmente partem antes da meia-noite. O nosso, para Brasília via Rio Branco, saiu às 0h50 da madrugada, e às 11h30 desembarcamos em São Paulo. Mima, uma brasileira-australiana, ficou em Rio Branco para encarar a Transamazônica por um dia e meio de ônibus até Cusco, no Peru. As irmãs Nykole e Deva Uta, as maravilhosas empreendedoras que nos possibilitaram essa viagem, embarcaram para o Rio Grande do Norte; Lauren seguiu para o Panamá e, de lá, para as montanhas da Costa Rica, onde gerencia a sua paradisíaca Finca Camino Nuevo, aberta ao público.

O voo de volta de Brasília é a coisa mais chata e com passageiros mais sem noção do mundo, um público totalmente diferente do que o que seguiu para o Acre, na ida. Sempre tem um chefe/ supervisor/ gerente com um subordinado ao lado explicando algo sobre a firma em plenos pulmões enquanto o outro anota; funcionários do governo explicando porque os juros não baixam para alguém ao lado e por aí vai. Que excelente oportunidade de colocarem um fone de ouvido e ir escutando a seleção de musicas das Aldeias NovaEsperança/ Sagrada, disponível no Spotify. Aff que gente. É a personificação do individualismo, o oposto da realidade que acabamos de deixar.

A cultura Yawanawa, assim como a da maior parte das etnias indígenas, é dotada de grande espírito de coletividade, sem distinção. As crianças são criadas livres, e todos olham por elas; na cozinha coletiva, todos fazem as refeições em conjunto; os barcos são utilizados por todos na aldeia; nas exposições de artesanato quem quer, participa, as compras são coletivas, é difícil encontrar alguém que diga “isso é meu”.

Você fica estupefato de ver como essas comunidades vivem em um local acessível somente por um rio cada vez mais raso e com mais troncos de árvores a quebrar motores, devido à erosão e ao desmatamento. Dotados de grande sabedoria e alimentados por uma espiritualidade incompreendida por nós, essa etnia percebeu que o seu futuro estava na “globalização”.
Hoje eles sobrevivem levando seu canto, rituais e cerimônias para todo o mundo, de Portugal à Turquia, da Suécia a Los Angeles e também para muitas capitais do país. Por mais que tenham “conforto” e entrem em contato com as chamadas “mordomias” dos homens brancos nessas ocasiões, eles encaram muitas horas de ônibus em estradas esburacadas e mais ainda em barcos precários para voltar às suas comunidades no interior da floresta. O orgulho de pertencer aos povos originários é perceptível nessas comunidades, que olham para nós com olhos de pena quando dizemos adeus, pela ansiedade que exalamos, pelas nossas queixas de insônia, pela vida que voltaremos a ter longe deles.


Haux Taux Yawanawas