O mundo voa para a Aldeia


Estou no voo de Brasília para Cruzeiro do Sul, no Acre, com escala em Rio Branco, a capital do estado. Ao meu lado está Manuel, um jovem que veio da Espanha para o Brasil pela primeira vez, decidido a se unir a esse grupo formado por pessoas daqui, dos Estados Unidos, Canadá, Croácia, Alemanha, México, Rússia, Colômbia e Peru para participar das cerimônias do Uni, na Aldeia Sagrada dos Yawanawa.

Os Yawanawa habitam 21 aldeias ao longo do rio Gregório, município acreano de Tarauacá, quase divisa com o Peru; a que leva o nome de Sagrada, para onde estamos indo, é bastante emblemática. O local foi o primeiro onde a etnia se fixou há milhares de anos. Com a crescente hostilidade de igrejas e seringueiros, essa terra foi gradativamente sendo abandonada, e parte dos Yawanawa que nela morava fundou outra aldeia rio acima, a Nova Esperança.

O cacique Nixiwaka Biraci Brasil fala aos visitantes diante de uma Sumaúma, mãe de todas as árvores

Em 2019, a líder espiritual Putany, uma mulher aguerrida, de uma força e carisma extraordinários, casada com o cacique Nixiwaka Biraci Brasil, liderou a reocupação do local fortemente motivada a honrar o legado de seus ancestrais, que lá ficaram sepultados. Menos de uma década depois, a Aldeia Sagrada, já estruturada, abre as “portas” para comitivas de fora, a maior parte conhecidos que estiveram com seus líderes em rituais do Uni no Rio, São Paulo e no exterior.

Chegar lá exige disposição: enfrentamos um total de nove horas de voo, mais quatro de ônibus e oito de barco. Vamos pegar três voos com destino final em Cruzeiro do Sul, polo turístico do Acre. Pernoitamos na cidade, “ajeitamos” as coisas por um dia e no outro madrugamos para tomar o ônibus até Tarauacá e, dali, o barco que nos levará até a Aldeia Sagrada.

Líderes políticos e espirituais da Aldeia, o cacique Nixiwaka Biraci e sua mulher Putanny Yawanawa chegaram a ser levados pelo diretor de cinema James Cameron para o Estúdio 7, em Los Angeles, durante a produção de um dos filmes da série Avatar. Lá deram, para a equipe do cineasta, toda a consultoria necessária sobre as cerimônias e rituais indígenas presentes nos filmes, como o Vê Kuxi (quando os pajés sopram sobre o corpo da pessoa doente com a finalidade de cura) e a Cerimônia do Uni, um momento espiritual de grande importância voltado ao crescimento pessoal e de conexão com a floresta.

No voo, perto de mim está sentada uma antropóloga com seu marido boliviano e duas crianças. A bebê tem um ano e essa é sua vigésima quinta viagem. O avião está lotado e seus passageiros parecem formar um grande grupo identitário. Desconfio então que os voos que partem de Brasília para o Norte estão cheios de pessoas assim, dedicadas à floresta e aos povos originários, viajam a trabalho (ONGs), para visitar parentes ou por curiosidade, por respeito aos ancestrais ou simplesmente para se desconectar do que fazem e ampliar suas vivências. Provavelmente, estou nesse último grupo.

Quando você identifica sua “tribo” no aeroporto, logo percebe que não está no meio de “gringos” ou turistas estrangeiros, não no sentido de quando viaja para o exterior. Aqui parece que você já os conhece há algum tempo, se identifica com eles nas primeiras apresentações, e a cumplicidade é imediata. Dentro do avião trocamos olhares de quem acha graça e se diz “ai meu Deus, haja paciência” quando alguém nos pergunta “o que é que vocês vão mesmo fazer no meio dos indígenas?” Pelo único fato de que estamos aqui com muita humildade para conhecer pessoas detentoras de uma cultura milenar e, com elas, aprendermos algo, pela disposição em contar nossas histórias e juntos nos acolhermos. Sabemos que estamos entre iguais. É isso o que vamos fazer.

Garoto Yawanawa toca tambor no ritual do banho de ervas

Na primeira vez em que estive com os Yawanawa, na Aldeia Akasha, em Itaipava, Rio de Janeiro, quando eles foram em comitiva realizar rituais no local, a audiência era diferente. Muitas pessoas na faixa dos 45-70 anos recorreram à cerimônia para falar de suas dores e experimentar o acolhimento em meio a um grupo ainda mais cosmopolita: um bombeiro sobrevivente do 11 de setembro em Nova York, uma garota cuja família fugiu de Sarajevo e outra da Rússia, uma turca muçulmana de esquerda interessada em levar a comitiva para cerimônias na Europa e um palestino parisiense profundamente preocupado com amigos que estavam na Faixa de Gaza. Será que eles ainda estavam vivos? Ele não sabia dizer.

Quando pediram para eu contar a minha história, me encolhi. Sem importância que era, naquele contexto, falei: “Não tenho nada para contar que se equipare ao que vocês disseram. Vim porque meu filho insistiu. Eu não estava levando muito a sério, mas aos poucos fui me sentindo abduzida, perplexa e encantada. Quero voltar mais vezes”.

E assim foi. Meses depois da experiência no Rio, estou aqui indo para o interior da floresta encontrar os Yawanawa em seu território de origem com um grupo de perfil bem diferente. Jovens que vieram de seus países com seus violões para tocar com os indígenas; outros para conhecer a floresta e o Brasil, praticamente todos dedicados à área da saúde corporal, meditação e yoga, terapias alternativas e música, alguns deles deixaram o mercado corporativo para se dedicar a esse modo de vida.

Ruidosos, divertidos, muitos já estiveram juntos em vivências anteriores. Entre si, combinam atividades como ficar três dias isolados na montanha Segualquia, em Santa Catarina, ou ir às cerimônias na Aldeia Yawaho, das guardiãs-irmãs Deva e Nicole, em Natal, Rio Grande do Norte, as líderes aqui do nosso grupo, ou ainda para a Finca Camino Nuevo em Monteverde, Costa Rica, da Lauren Landan, a única da minha faixa etária 60+ no grupo. O rapaz espanhol ao meu lado pergunta se quero seguir viagem com ele para o Peru, rumo a um retiro de instrumentistas musicais. “Não, obrigada”, respondi, “não trouxe meu piano”.

Há muita expectativa sobre as comemorações – às quais vamos nos juntar – dos 60 anos do cacique Nixiwaka Biraci, uma figura extraordinária, forte liderança dos povos da floresta. Sua comunidade será a próxima a sediar a Conferência Internacional da Ayahuasca, reunindo mais de 200 líderes indígenas do Brasil e do exterior.

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Isaura Mafei
Isaura Mafei
1 ano atrás

Narrativa e experiência espetaculares!!
Fazendo a leitura, conseguimos viajar com você,.
Parabéns!!

Maristela Mafei
Editor
1 ano atrás
Reply to  Isaura Mafei

Obrigada Isaura, espero poder corresponder à altura!!

Flávia Campana
Flávia Campana
1 ano atrás

Estou encantada por essa magnífica experiência. Quero sabe muito mais!
Parabéns por nos mostrar tudo isso!!!

Maristela Mafei
Editor
1 ano atrás

Que bom que voce gostou Flavinha, obrigada pelo o incentivo!!

Nykole Nunes Passos
Nykole Nunes Passos
1 ano atrás

Que delícia reviver essa jornada através do seu relato, querida! Vai ser um prazer acompanhar as próximas publicações.

Maristela Mafei
Editor
1 ano atrás

E, para mim, sera um prazer retornar às terras indígenas com voce querida Nykole!!

Rita Mazzotti
Rita Mazzotti
1 ano atrás

Essa experiência te torna ainda mais especial. Adoro a sumaúma, árvore mãe.

Maristela Mafei
Editor
1 ano atrás
Reply to  Rita Mazzotti

Sim voce tem muito conhecimento do assunto Rita, qualquer dia quero que conte tudo o aie sabe, vamos trocar
Experiencias!!!

Marco Aurelio
Marco Aurelio
1 ano atrás

Sensacional!! Experiência única!

Maristela Mafei
Editor
1 ano atrás
Reply to  Marco Aurelio

Obrigada pelo incentivo e carinho de sempre
Marco Aurelio

Jaci helena guidi
Jaci helena guidi
1 ano atrás

Maravilhosa experiência Maristela! Nos remete a pensar no quão somos pequenos em nosso saber! Valeu!

Maristela Mafei
Editor
1 ano atrás

É mais pura verdade Jaci Helena, precisamos ser muito humildes para reconhecer isso!

Maria claudia mafei
Maria claudia mafei
1 ano atrás

Arrepia seu relato. Mostra como nós, pessoas “normais”, estamos vivendo fora deste planeta.

Maristela Mafei
Maristela Mafei
1 ano atrás

Totalmente fora Maria Claudia

luisa mafei
luisa mafei
1 ano atrás

Fiquei encantada com o relato e com o seu olhar atento e curioso em relação ao outro. Que encontro tão bonito e potente, e que sorte a nossa em poder acompanhar essa jornada por aqui! Ansiosa pelos próximos post!

Maristela Mafei
Maristela Mafei
1 ano atrás
Reply to  luisa mafei

Que bom saber que voce esta gostando tanto e que aprende algo, obrigada Luisa!!!

Luiz Eduardo Bruni
Luiz Eduardo Bruni
1 ano atrás

Muito obrigado por sua coragem em enfrentar essa longa viagem, Maristela e por nos levar com você através desse relato. Espero ansioso a continuação.

Maristela Mafei
Maristela Mafei
1 ano atrás

Precisa mesmo de muita coragem Luiz Eduardo, bom saber que voce gostou!!

Lourdes Sola
Lourdes Sola
1 ano atrás

Muito bom poder viajar com você! A cumplicidade e sensibilidade do grupo estão lindamente descritas no seu texto. Vou acompanhar esta experiência incrível e linda por aqui. Obrigada!

Maristela Mafei
Maristela Mafei
1 ano atrás
Reply to  Lourdes Sola

Que bom que voce esta gostando Lourdinha, feliz em saber, hoje publiquei a segunda materia, bjo!!

Sofia Carvalhosa
Sofia Carvalhosa
1 ano atrás

Acho bonito como você está aberta para essa experiência com os indíginas! Lindo relato

Maristela Mafei
Maristela Mafei
1 ano atrás

Obrigada querida Sofia😊💥

Ana Carla Oliveira
Ana Carla Oliveira
1 ano atrás

Que delícia te ler Maristela!
Que experiência bacana!
Seu relato traz uma sensação de pertencer a algum lugar e nos dá um sentimento de importância, de fazer parte de algo que é maior e mais importante que nós.

Maristela Mafei
Maristela Mafei
1 ano atrás

Sim Ana Carla, quando olhamos para o mundo ao nosso redor e não apenas para a gente mesmo sentimos de fato que fazemos parte de algo bem maior e mais importante do que nós!

Marina Bueno Cardoso
Marina Bueno Cardoso
1 ano atrás

Quero saber mais! Que beleza de relato, Maristela!

Maristela Mafei
Maristela Mafei
1 ano atrás

Obrigada querida amiga Marina, hoje publiquei a segunda matéria no blog, muito bom saber que voce esta gostando!!

Daniela Guasti
Daniela Guasti
1 ano atrás

Encantada! Parabéns Maristela! Ansiosa por mais. Bjo

Maristela Mafei
Maristela Mafei
1 ano atrás
Reply to  Daniela Guasti

Obrigada querida prima!!! Bom saber que voce esta gostando!!

Marcos Escudeiro
Marcos Escudeiro
1 ano atrás

Sensacional! Inveja boa !