
A cerimônia do Uni dos Yawanawa é uma das coisas mais bonitas de se ver no mundo, tomando ou não o Uni. Começa às 20h e costuma ir até 6h da manhã em um ritual que acontece no Shuhu, uma espécie de oca enorme construída com vigas de madeira, coberta por telhas, sapé e folhas de palmeira. Uma abertura em parte do teto dá escape à fumaça, nas ocasiões em que a fogueira é acesa.
Estávamos em cerca de 100 pessoas. Todos se acomodaram muito bem para participar das três partes da cerimônia, as duas primeiras com muita cantoria, tanto individual (em que os Mekãs, cantos espirituais que evocam a Força, ou os sonhos e miragens são cantados) como em grupo (chamados de Sitii, esses cantos abordam vários temas como amor, coragem, esperança e até mesmo saudação aos visitantes). Os cantos são executados pelas e pelos jovens da comunidade, acompanhados de dança, movimentos corporais, com ou sem acompanhamento de instrumentos musicais, notadamente tambores, violões e, algumas vezes, flautas.
CANTOS, DANÇAS E MOVIMENTOS TOMAM CONTA DA CERIMÔNIA

Desde o início, todos são convidados a formar uma grande roda. Os cantos são repetidos para que possamos memorizar os refrões e acompanhá-los, com vários solistas, instrumentistas e percussionistas da comunidade se revezando.
Mukavani, 12, e sua irmã Mukacharro, 15, os filhos caçulas do cacique Nixiwaka que estavam em um local afastado, mas dentro da Aldeia, chamado Terreiro do Muká, em dieta especial com a mãe, a líder espiritual Putany Yawanawa, apareceram de surpresa e conduziram boa parte do ritual. Ambos têm voz extremamente potente, capaz de fazer inveja a qualquer solista do Metropolitan Opera, em Nova York, ou do Royal Opera, de Londres. Acredito que todos os aspirantes a cantores do mundo seguiriam de bom grado as dietas e preparos específicos que esses jovens praticam para alcançar a voz que têm. Quando eles cantam, seja o ouvinte crente, místico ou ateu, não resta dúvida de que o Criador existe e entrou em você.
CONEXÃO COM A MEMÓRIA DOS ANCESTRAIS

Para os Yawanawa, a cerimônia do Uni é mais um dos rituais realizados para religar seus integrantes aos conhecimentos e memórias dos ancestrais. As dietas e jejuns aguçam as percepções e deixam corpo e mente abertos para o acesso à espiritualidade e ao Sagrado.
O Uni ou Ayauhasca, feito da mistura do cipó Mariri com as folhas da Chacrona, consumido por pelo menos 72 grupos indígenas da Amazônia, possibilita uma conexão com a floresta, com seus animais — a jiboia e a cascavel, por exemplo, que “ficam em pé” e “chacoalham”, indicam que é hora de levantar a cabeça e seguir em frente — e ainda com os antepassados, a fim de receber orientações sobre o que fazer, qual caminho a seguir.
Foi em uma dessas cerimônias que os ancestrais apareceram nas visões da líder Putany, incumbindo-a da missão de liderar seu povo para retomar as terras que eram deles originariamente, a Aldeia Sagrada.
CASAMENTO GRINGO NA ALDEIA – TER FILHOS É IMPORTANTE

Um jovem casal de visitantes da nossa comitiva (ele do México, ela dos Estados Unidos) se casa na Aldeia. Os dois entram no recinto vestidos a caráter para ouvir o cacique Nixiwaka explicar o que significa um casamento para os Yawanawa.
“Mais um homem, mais uma mulher para ajudar nossos chefes a cuidar da nossa aldeia. O compromisso é um com o outro e com toda a comunidade”, diz Nixiwaka, chamando líderes da comunidade para detalhar o papel de cada um dos cônjuges, a necessidade de união duradoura, de deixar um legado que começa por ter filhos. Isso é muito importante para a etnia, que já somou 80 mil pessoas quando o Brasil foi “descoberto”; foi praticamente dizimada, reduzida a 280 indivíduos em meados do século 20, e agora não poupa esforços para ver crescer cada vez mais seus atuais 1,8 mil integrantes.

É muito comum ver casais Yawanawa com cinco, seis filhos. Crianças pequenas não contam com um adulto específico atrás delas o dia todo – sempre tem adultos por perto em todas as áreas e, junto com suas atividades, todos dão uma espiada no que elas estão fazendo. Correm livremente pela aldeia, improvisam várias brincadeiras, e o auge da alegria acontece quando passa um adulto e diz “vamos para o rio”, aí o alvoroço é total. Em uma dessas ocasiões, fui junto. As crianças não pouparam esforços, no rio, para me mostrar onde era fundo, onde não era, e “ó, vejam só como eu já sei nadar”!!!
O RITUAL QUE DEIXA TODOS EXTASIADOS

Muito difícil descrever a sensação que toma conta de você ao ouvir os Yawanawa cantarem e se movimentarem no interior do Shuhu nas cerimônias do Uni; é algo inebriante, você se esquece que é madrugada avançada e que deveria estar morrendo de sono, estendendo seu colchonete em algum canto para um cochilo.
Que nada. Você fica extasiada com aquelas pessoas, que vozes, que talento, que espetáculo lúdico, os trajes, os adornos, as pinturas corporais, as danças, os movimentos, tudo envolve e “embebeda”, e quando você se dá conta, a terceira e última parte da cerimônia já foi iniciada.

É aqui que a situação se inverte e os convidados assumem tambores e violões para apresentarem repertório de seus países para a comunidade local. Quando percebi, já eram 6hs da manhã, hora de voltar para o quarto, dormir algumas horas e seguir, antes do almoço, rumo à floresta para o banho de ervas.
BANHO DE ERVAS NA FLORESTA ESPANTA MAU-OLHADO

O banho de ervas consiste em uma mistura de várias plantas que nos purifica e nos fortalece e o recebemos em forma de esfoliação dentro de “cabines” feitas especialmente para essa finalidade, na floresta, erguidas com folhas de coqueiro e palmeira — enquanto crianças de três, quatro anos dão um verdadeiro “show” de tambor, acompanhando suas jovens mães e irmãs no violão.
Homens e mulheres dão-se as mãos em filas opostas e dançam um em direção ao outro; é impressionante como em qualquer atividade dos Yawanawa, desde a cerimônia sagrada, caminhadas ao rio, na mata, nos banhos de ervas, em tudo a dança, os cantos e os tambores estão presentes. É um povo extremamente musical e muitos dos integrantes da nossa comitiva estão aqui com seus instrumentos para fazer aulas de cantos ancestrais com eles.
NIXIWAKA EXPLICA O SIGNIFICADO DAS ERVAS

Ajudado pela guia e tradutora (para o inglês) Deví, o cacique Nixiwaka nos conta para que servem algumas das ervas empregadas na esfoliação que estávamos recebendo – a Nawáwarani afasta mágoas, raiva e inveja que o outro tem de nós, enquanto a Piraw, no sentido oposto, tira a mágoa que temos e nos acalma, nos faz ter paciência para tomar decisões certas.
Desnecessário falar do assédio ao redor do cacique ao voltarmos para a Aldeia, liderado por mim, diga-se de passagem. Todos queríamos levar mudas dessas plantas na mala, na volta para casa, e perpetuar essa sensação de encantamento e sossego.

Relato que arrepia! Nos leva para dentro da aldeia. Palavras “escondidas” dentro do texto que abre a mente para um “novo mundo”.
Muito bom seu artigo, que nos mostra um espetáculo de cores, sons e amores. Obrigada por compartilhar sua experiência.
Espetacular relato!
Isso precisa virar livro!!
Parabéns, @Maristela Mafei!